Amazonas & Interior
Após requerimento da Defensoria Pública, MPAM reabre inquérito sobre a morte do indígena Tadeo Kulina e determina novas investigações
Em pedido de desarquivamento, defensores demonstraram que novos indícios apontam que ação humana pode ter contribuído para a morte do indígena de recente contato, ocorrida no início de 2024 em Manaus

Atendendo a um pedido da Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM), o Ministério Público do Estado do Amazonas (MPAM) desarquivou o inquérito que apurou a morte do indígena Tadeo Kulina, que foi encontrado morto em Manaus após desaparecer de uma maternidade pública em fevereiro de 2024.
Diante de novos indícios apontarem que ação humana pode ter contribuído com a morte do indígena de recente contato, o promotor Flávio Mota Morais Silveira determinou que, dentro de 90 dias, a Polícia Civil faça uma nova investigação e solicitou a realização de uma série de novas diligências, como novos laudos e oitivas de testemunhas.

Exames constataram graves lesões intracranianas. Ele não resistiu e acabou morrendo às 1h do dia 7, um dia antes de completar 34 anos de idade.
A causa da morte indicada no laudo necroscópico foi hematoma subdural, fratura de base de crânio e traumatismo cranioencefálico por instrumento contundente.
A Polícia Civil concluiu as investigações e opinou pelo encerramento do inquérito por inexistência de indícios autoria e materialidade de crime de homicídio, apontando para a ocorrência de morte acidental em razão de quedas sofridas pela vítima. O MPAM requisitou novas diligências e depois decidiu arquivar o caso.
A família de Tadeo não chegou a ser comunicada do arquivamento.
A Defensoria Pública ingressou com o pedido junto ao MPAM representando os interesses da mãe e de um irmão do indígena.
Novas provas e indícios de tortura
No pedido de desarquivamento encaminhado ao MPAM, os defensores públicos Daniele dos Santos Fernandes e João Gustavo Henriques de Morais Fonseca apresentaram novas provas, como a ficha de atendimento médico-hospitalar, que não consta nos autos do inquérito, que apontam sinais de agressão física e tortura contra a vítima, incompatíveis com morte acidental.
O documento assinado por um médico informa que, no momento do ingresso no hospital, Tadeo foi conduzido por policiais militares desacordado, transportado em cadeira de rodas, apresentando sinais de agressão física e tortura, com mãos e pés amarrados e múltiplos hematomas espalhados por diversas partes do corpo.
“O fato de a vítima ter sido conduzida ao hospital com pés e mãos amarrados jamais foi mencionado no inquérito, tampouco que Tadeo chegou ao hospital já em estado de inconsciência”, destacam os defensores, integrantes do Núcleo Especializado de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais da DPE-AM.
Os defensores afirmam que, nesse contexto, não é possível concluir com segurança que as quedas que Tadeo sofreu antes de ser levado ao hospital – que foram registradas em um vídeo de 30 segundos anexado ao inquérito – foram suficientes para resultar na morte dele, considerando que parte da dinâmica dos fatos permanece obscura.
“Ora, no momento do vídeo, a vítima não estava amarrada e não é possível visualizar as várias escoriações pelo corpo documentadas pela equipe médica”, observam os defensores públicos.
Daniele Fernandes e João Gustavo Fonseca ressaltam que é evidente que, em algum período entre as quedas e a chegada da vítima ao hospital, “ocorreram eventos de agressão e eventuais negligências que não foram investigados e que podem ter produzido, por si sós, a morte da vítima, descaracterizando a morte acidental”.
Mais lacunas e repercussão nacional
O documento encaminhado pela Defensoria Pública ao MPAM inclui ainda um apanhado da apuração jornalística da Folha de S. Paulo publicada no podcast “Dois Mundos”. A reportagem em áudio deu repercussão nacional ao caso e também apresentou elementos que, na avaliação dos defensores, precisam de melhor esclarecimento.
Entrevistas feitas pelo podcast indicam que, tanto após as quedas quanto no momento em que os policiais abriram a viatura para liberar Tadeo na saída da delegacia, ele estava bem, “o que aparentemente contraria o depoimento dos policiais militares, segundo os quais notaram que Tadeo estaria passando mal quando foram liberá-lo”.
“Nesse aspecto, é importante mencionar que não há nos autos do inquérito qualquer registro sobre o período em que Tadeo permaneceu trancado no camburão da viatura policial enquanto aguardava a lavratura do boletim de ocorrência no 14º DIP, procedimento que não foi realizado em razão da desistência da responsável pelo lava jato”, pontuam os defensores públicos.
Conforme os defensores, a cronologia dos fatos também necessita ser esclarecida no inquérito, uma vez que a responsável pelo lava jato declarou que por volta das 14h do dia 6 de fevereiro teria sido informada de que um homem havia caído da laje do estabelecimento e estaria bastante agressivo, motivo pelo qual acionou a Polícia Militar.
Entenda o caso
Indígena de recente contato do povo Madiha Kulina e não falante da língua portuguesa, Tadeo veio para Manaus acompanhar sua mulher, Ccorima Kulina, que teve complicações durante gestação.
Moradores da aldeia Macapá, na região do Médio Juruá, em Envira, a mais de 1.200 quilômetros de Manaus, eles nunca tinham deixado a região, mas Ccorima precisou ser removida por UTI aérea à capital para realização do parto.
Após a mulher ser internada na maternidade Ana Braga, Tadeo deixou o local e permaneceu desaparecido por oito dias até seu corpo ser encontrado no Instituto Médico Legal (IML).
Em seu deslocamento, horas antes de morrer, o indígena chegou a um lava jato localizado na avenida Autaz Mirim, onde teria sofrido as quedas, que foram registradas em vídeo.
Contradições e questionamentos
Pessoas que estavam no lava jato relataram ao jornal Folha de S. Paulo que Tadeo chegou por volta das 14h. Segundo os relatos, ele estava transtornado e muito agressivo, motivo pelo qual resolveram chamar a Polícia Militar.
O relatório de ocorrência registra que o chamado à PM teria ocorrido às 15h30.
“O que teria acontecido durante mais de uma hora e meia entre um evento e outro? Sabe-se que Tadeo deu entrada no hospital às 16h55. Contudo, desconhece-se por quanto tempo permaneceu ferido e sem assistência médica no interior da viatura”, apontam Daniele Fernandes e João Gustavo Fonseca no documento encaminhado ao MPAM.
Os defensores também dizem que é preciso esclarecer contradições entre os depoimentos das testemunhas da ocorrência no lava jato. Uma delas contou que Tadeo teria entrado no estabelecimento, subido na mureta e se atirado da laje, sem ter brigado com ninguém ou proferido qualquer palavra. Outra disse que ela e outros funcionários, após a queda, teriam tentado conter Tadeo devido ao seu comportamento agressivo e agitado, sem obter êxito.
Os policiais militares, por sua vez, em depoimentos idênticos entre si, disseram que Tadeo teria sido amarrado pela população e que teria agredido um lavador de carros. Além disso, consta do relatório de ocorrência que Tadeo portava uma faca.
A Defensoria Pública demonstrou que os elementos presentes nos depoimentos dos policiais são contraditórios às versões apresentadas pelas demais testemunhas, tanto aos investigadores quanto na entrevista à Folha.
Conforme o pedido de desarquivamento, uma nova oitiva das testemunhas é imprescindível para esclarecimento “das contradições relacionadas aos horários e à dinâmica dos fatos no estabelecimento, à existência ou não de contenção pela população”, bem como à condição em que Tadeo se encontrava quando as testemunhas o viram pela última vez na viatura policial.
“Isso porque, na entrevista concedida ao referido podcast, a responsável pelo lava jato afirma que Tadeo estava bem quando abriram a viatura, enquanto a ficha de atendimento do Hospital João Lúcio registra que Tadeo chegou desacordado, amarrado e transportado em cadeira de rodas”, registra trecho do documento.
Segundo os defensores, é necessário investigar, inclusive, se houve negligência no socorro da vítima que tenha contribuído para sua morte. “Afinal, a extensão das lesões apontadas no laudo necroscópico evidencia a urgência do atendimento médico desde o momento em que foram produzidas”, apontam.
Texto: Luciano Falbo
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